No dia 02 de maio de 1936, há exatamente 79 anos, o Estado do Pará perdia uma das mais talentosas mentes da Literatura, o poeta Antônio Tavernard.
Nossa Biblioteca Comunitária relembra um pouco de sua história através do poeta Carlos Correia Santos, escritor e estudioso da vida do poeta icoaraciense.
Abaixo o texto na íntegra para nossos usuários e pesquisadores no assunto:
" Era o dia
dez de outubro de 1908. As cercanias da capital do Estado do Pará viviam o
desde sempre mágico período do Círio de Nazaré. Inspirados por todo aquele
clima, o Mistério, a Força e a Beleza resolveram dar-se as mãos e se puseram a
passear pela antiga Vila Pinheiro (atual distrito de Icoaraci) . O
destino? Rua Siqueira Mendes, 585. Eles sabiam que um bom amigo estava por
nascer dali a pouco. Do interior de um chalé português de fachada estreitada e
angulosa, em frente à baía, ouve-se um choro que parece ir se misturar às águas
do rio. Chegava à vida – para uma vida tão curta e intensa – um dos mais
arrebatadores poetas de que todo Norte teria notícia: Antônio de Nazareth
Frazão Tavernard.
Em sua
cama, exausta pelo parto, mas firme e enlevada, Marietta Frazão Tavernard toma
nos braços uma jóia rara, preciosidade que nortearia seu viver daquele momento
em diante. Orgulhoso, o pai, Othilio Tavernard, saúda o destino. Ali estava um
herdeiro para eternizar o seu sobrenome. Batizado como Antônio, o varão logo
passaria a ser tratado afetuosamente por Tony. Sua chegada representava um
consolo. O casal já havia perdido a primeira filha, Adélia. Naquele bebê se
depositavam outra vez os sonhos paternos que inspiram um primeiro filho.
Ao sabor
do clima bucólico da Vila dos Pinheiros e embalado pelo rio que seus olhos
sonhadores veriam sempre como um mar, Tony inicia uma infância calma, suave.
Fase banhada pelos ventos da maré. Diria ele: “Nasci em frente ao mar/ Meu
primeiro vagido misturou-se ao fragor do seu bramido/ Tenho a vida do mar!/
Tenho a alma do mar!”. Um menino ansioso por tudo que fosse novidade começava
sua trajetória.
A família
muda-se para a capital, Belém. O endereço novo era outro chalé em estilo
lusitano, agora na Avenida Conselheiro Furtado, esquina com a Generalíssimo
Deodoro. Seguindo o costume da época, a residência precisava de um nome que
logo é escolhido: Retiro São Benedito. O lugar correspondia à perfeita tradução
do que eram, no período, os lares dessa região da cidade. Espécies de chácaras
acolhedoras e amplas, cercadas por verde. As calçadas largas distribuíam-se
pelas partes laterais e frontal do prédio. Nos fundos, um quintal todo cercado
por estacas de acapu. Terreno amplo que acolheria muitas alegrias e amarguras.
Tony
iniciou o primário no Externato Santa Mônica, dirigido pela professora Clarisse
Proença, e concluiria o curso com o professor João Pereira de Castro, cuja responsabilidade
era encaminhar os pupilos ao curso secundário. O jovem Antônio desde cedo
revelou-se um aluno exemplar, acima da média dos colegas. Um amigo do pai de
Tony assim o definiria: “Tavernard, tens um filho que é um verdadeiro gato para
saltar e pegar bola e uma águia na cultura”.
A verve
artística do garoto foi em muito alimentada pela atmosfera boêmia da Belém das
primeiras décadas do século XX. Era um tempo em que vizinhos formavam entre si
uma verdadeira comunidade. À noite, em frente aos portões dos chalés e
sobrados, reuniam-se os amigos da rua para saudar o luar com serenatas e
declamações de poemas. Choravam os violões, suspiravam as moças. Era tudo
romantismo e encanto. Quando chegava o Círio, o São João ou o Carnaval, os
Tavernard abriam seu amplo quintal para a alegria dos cordões, pastoris e
noitadas nazarenas. A obra do futuro escritor seria um grande bordado de tudo
aquilo.
Com a
chegada dos onze anos, chegava para Tony o tempo de ingressar no Ginásio
Paraense (atual Paes de Carvalho). Ele não muda: mantém-se aquele misto raro de
menino maroto e brilhante. Foi naquele centro educacional que começou a
alimentar o gosto por seus próprios versos. Eram poemas que escrevia para o
jornalzinho do colégio, o C.P.C. A essa altura, já aposentado, Othilio
Tavernard trabalhava como redator no jornal “A Província do Pará” (onde
chegaria a gerente, na administração do amigo Pedro Chermont de Miranda). Ali
estava um espaço aberto para o crescente talento do filho. Tony teve a chance
de publicar várias de suas poesias no jornal. Desta feita, novas portas foram
se abrindo.
Concluído
o curso preparatório de humanidades, o poeta matricula-se na Faculdade de
Direito do Pará. Era o ano de 1926 e tudo na vida daquele excepcional rapaz de
dezoito anos está para mudar dramaticamente. Tony cai doente. Médicos, exames e
surge, por fim, o diagnóstico: hanseníase. A doença, vulgarmente conhecida como
lepra, era, então, incurável. Nada podia ser feito pelo garoto. Uma cruel
realidade lhe bate ao rosto: viver um doloroso processo degenerativo. O mundo
dos sonhos, uma carreira promissora, toda uma juventude fadada ao fim. Antônio
Tavernard escreve: “Acharam muito que eu sorrisse tanto/ e fizeram com que na
minha boca/ morresse o riso e despontasse o pranto”. Ele não pôde sequer
concluir o primeiro ano da Faculdade. Decidiu que era preciso se recolher,
afastar-se do inevitável preconceito que o vitimaria. Precisava isolar-se para
encontrar uma forma qualquer de renascer.
Atendendo
a um pedido do filho, Othilio manda construir nos fundos da casa um pequeno
chalé. Lugar que o enfermo poeta chamaria de “Rancho Fundo”. Antevendo-se
alguma emergência, um sistema especial de sineta é criado, unindo o prédio
principal à pequena casa. Para o local são transportados todos os pertences do
rapaz. Sobretudo, suas preciosidades: livros, jornais, revistas, resmas de
papel e canetas. Passado o choque inicial imposto pela nova realidade, Tony não
sucumbe a angústia. Floresce em sua alma um dos mais impressionantes
testemunhos de coragem já vistos. Sua fé, no lugar de esmorecer, torna-se
imbatível. Era preciso que as lágrimas se transformassem em fonte de algo mais,
que virassem o minar da mais vibrante e arrebatadora arte. Incentivado pela fiel
e devotada amiga, sua mãe, ele dá início a uma produção literária
assustadoramente bela.
A sombra
da doença traz para a alma de Tony um tom místico, um estilo visceral. Aos 19
anos, ele já conta com uma vasta gama de trabalhos, torna-se um artista conhecido
e respeitado pela classe. Com esta mesma idade, obteve o segundo lugar no
concurso nacional de contos da revista “Primeira”, passando a colaborador da
publicação. Seria ainda redator-chefe da revista “A Semana” e colaborador em
quase toda a imprensa do país.
Os amigos
de verdade não se afastam de Tony. E amigos novos surgem, interessados em se
aproximar daquela alma que conseguia fazer de sua tragédia pessoal gênese para
tanta beleza. O Rancho Fundo em nada se tornou um centro de solidão. Rodas de
violeiros, boêmios e poetas formavam-se ao redor do leito de Tony. E ele
poetiza: “Meu São João/ na noite do vosso dia/ com fogueiras brilhando de
alegria/ com alegrias cantando num rojão/ parai um pouco na melancolia/ do meu
portão”.
Personalidades
vinham de longe conhecer tão cativante criatura. Fernando Castro, um dos amigos
de Tony, dada ocasião, pediu-lhe para que recebesse o intelectual Paschoal
Carlos Magno, que visitava Belém e insistia em conhecer o poeta. Uma vez
apresentados por Fernando, Magno teria falado: “Muito prazer em conhecer o novo
Machado de Assis”, ao que Tony responderia: “Com uma grande diferença: menos
talento e mais sofrimento”.
Em 1929,
o poeta finaliza seu primeiro livro. Uma coletânea de contos que atendia pelo
sugestivo título de “Fêmea”. A obra reunia textos com temáticas ousadas para a
época. A capa ganhou a provocativa ilustração de uma mulher nua, de costas e
pendurada nas palavras Antônio Tavernard. Desenho assinado pelo pintor peruano
Roberto Reynoso. O livro é editado no ano seguinte, causando reações díspares
no meio literário: de um lado, desaprovação; do outro, aplausos.
Ainda em
1930, em parceria com o amigo Fernando Castro, Tavernard lançaria a comédia “A
menina dos 20.000”. Era a prova de que o poeta sabia, como poucos, alimentar
sua veia humorística, mesmo em meio a seu drama. Tony escreve ainda para o
teatro as deliciosas peças “Seringadela”, “Que tarde” e “Paratí”. Escreveu o hino oficial do Clube do Remo que hoje é cantado em verso e prosa por milhares de admiradores do clube ( texto nosso).
Um
marcante enlace entre duas dádivas da arte paraense acontece no ano de 1932.
Outra vez cumprindo o papel de ponte, Fernando Castro une Antônio Tavernard ao
jovem compositor Waldemar Henrique. Os dois, no entanto, jamais se veriam
pessoalmente, pois o poeta já vivia em total reclusão no Rancho Fundo. Apesar
da distância, o entrosamento entre os três artistas foi absoluto. Decidiram montar
um espetáculo teatral a ser encenado na quadra nazarena. O objetivo era
reverter a renda em prol do próprio Tony, já bastante debilitado pela
enfermidade. Fernando tomou para si o encargo de fazer os textos da revista
teatral que se chamaria “A casa da viúva Costa”. A Tavernard caberia a parte
poética e a Waldemar, as partituras dos números musicais. Em outubro de 32 a
peça é encenada num dos vários teatrinhos do arraial de Nazaré, recebendo
críticas altamente elogiosas por parte da imprensa: “Todos três têm talento até
para ceder por empréstimo”, estamparia um periódico. Bilhetes e telefonemas
tornaram-se os aliados de Waldemar e Tony na troca de idéias e inspiração.
Desse modo, os dois idealizaram uma série de canções inspiradas nas lendas
amazônicas. Apenas duas, entretanto, chegariam a ser concluídas: “Foi Boto,
Sinhá” e “Matinta Pererêra”. O tempo para desenvolver aquele promissor enlace
artístico fez-se diminuto. A doença avançava pelo interior de Tony de forma
impiedosa e voraz.
Era o dia
02 de maio de 1936. Manhã clara, amena A sineta do Rancho Fundo toca com
angústia. D. Marietta corre em busca do filho, o bebê que tomara no colo na
Vila dos Pinheiros. A matriarca manda que chamem Othilio no trabalho com
urgência. Sabendo o que estava por acontecer, ela conduz o poeta para fora de
seu refúgio e, outra vez tomando-o nos braços, acomoda-se numa cadeira de
balanço. A própria imagem da Pietá. Nos braços da mãe, Tony fecha os olhos por
definitivo. Aos vinte oito anos, o anjo alado por versos é levado de volta à
eternidade pelo Mistério, pela Força e pela Beleza. Dias depois do enterro, uma
vizinha revelaria a família ter sonhado com o poeta, todo vestido com uma
túnica branca, procurando sentar-se e dizendo, arfante: “Graças a Deus,
cheguei!”.
Fonte:
SANTOS, Carlos Correia. Antônio Tavernard:
patrimônio das letras amazônicas. Disponível em: http://www.souparaense.com/2011/03/antonio-tavernard-patrimonio-das-letras.html.
Acesso em 02 maio 2015.