segunda-feira, 4 de maio de 2015

Homenagem "in memorian" ao poeta Tavernard: 79 anos de falecimento

No dia 02 de maio de 1936, há exatamente 79 anos, o Estado do Pará perdia uma das mais talentosas mentes da Literatura, o poeta Antônio Tavernard. 
Nossa Biblioteca Comunitária relembra um pouco de sua história através do poeta Carlos Correia Santos, escritor e estudioso da vida do poeta icoaraciense.   

Abaixo o texto na íntegra para nossos usuários e pesquisadores no assunto: 

" Era o dia dez de outubro de 1908. As cercanias da capital do Estado do Pará viviam o desde sempre mágico período do Círio de Nazaré. Inspirados por todo aquele clima, o Mistério, a Força e a Beleza resolveram dar-se as mãos e se puseram a passear pela antiga Vila Pinheiro (atual distrito de Icoaraci) . O destino? Rua Siqueira Mendes, 585. Eles sabiam que um bom amigo estava por nascer dali a pouco. Do interior de um chalé português de fachada estreitada e angulosa, em frente à baía, ouve-se um choro que parece ir se misturar às águas do rio. Chegava à vida – para uma vida tão curta e intensa – um dos mais arrebatadores poetas de que todo Norte teria notícia: Antônio de Nazareth Frazão Tavernard.


Em sua cama, exausta pelo parto, mas firme e enlevada, Marietta Frazão Tavernard toma nos braços uma jóia rara, preciosidade que nortearia seu viver daquele momento em diante. Orgulhoso, o pai, Othilio Tavernard, saúda o destino. Ali estava um herdeiro para eternizar o seu sobrenome. Batizado como Antônio, o varão logo passaria a ser tratado afetuosamente por Tony. Sua chegada representava um consolo. O casal já havia perdido a primeira filha, Adélia. Naquele bebê se depositavam outra vez os sonhos paternos que inspiram um primeiro filho.

Ao sabor do clima bucólico da Vila dos Pinheiros e embalado pelo rio que seus olhos sonhadores veriam sempre como um mar, Tony inicia uma infância calma, suave. Fase banhada pelos ventos da maré. Diria ele: “Nasci em frente ao mar/ Meu primeiro vagido misturou-se ao fragor do seu bramido/ Tenho a vida do mar!/ Tenho a alma do mar!”. Um menino ansioso por tudo que fosse novidade começava sua trajetória.


A família muda-se para a capital, Belém. O endereço novo era outro chalé em estilo lusitano, agora na Avenida Conselheiro Furtado, esquina com a Generalíssimo Deodoro. Seguindo o costume da época, a residência precisava de um nome que logo é escolhido: Retiro São Benedito. O lugar correspondia à perfeita tradução do que eram, no período, os lares dessa região da cidade. Espécies de chácaras acolhedoras e amplas, cercadas por verde. As calçadas largas distribuíam-se pelas partes laterais e frontal do prédio. Nos fundos, um quintal todo cercado por estacas de acapu. Terreno amplo que acolheria muitas alegrias e amarguras.

Tony iniciou o primário no Externato Santa Mônica, dirigido pela professora Clarisse Proença, e concluiria o curso com o professor João Pereira de Castro, cuja responsabilidade era encaminhar os pupilos ao curso secundário. O jovem Antônio desde cedo revelou-se um aluno exemplar, acima da média dos colegas. Um amigo do pai de Tony assim o definiria: “Tavernard, tens um filho que é um verdadeiro gato para saltar e pegar bola e uma águia na cultura”.

A verve artística do garoto foi em muito alimentada pela atmosfera boêmia da Belém das primeiras décadas do século XX. Era um tempo em que vizinhos formavam entre si uma verdadeira comunidade. À noite, em frente aos portões dos chalés e sobrados, reuniam-se os amigos da rua para saudar o luar com serenatas e declamações de poemas. Choravam os violões, suspiravam as moças. Era tudo romantismo e encanto. Quando chegava o Círio, o São João ou o Carnaval, os Tavernard abriam seu amplo quintal para a alegria dos cordões, pastoris e noitadas nazarenas. A obra do futuro escritor seria um grande bordado de tudo aquilo.

Com a chegada dos onze anos, chegava para Tony o tempo de ingressar no Ginásio Paraense (atual Paes de Carvalho). Ele não muda: mantém-se aquele misto raro de menino maroto e brilhante. Foi naquele centro educacional que começou a alimentar o gosto por seus próprios versos. Eram poemas que escrevia para o jornalzinho do colégio, o C.P.C. A essa altura, já aposentado, Othilio Tavernard trabalhava como redator no jornal “A Província do Pará” (onde chegaria a gerente, na administração do amigo Pedro Chermont de Miranda). Ali estava um espaço aberto para o crescente talento do filho. Tony teve a chance de publicar várias de suas poesias no jornal. Desta feita, novas portas foram se abrindo.


Concluído o curso preparatório de humanidades, o poeta matricula-se na Faculdade de Direito do Pará. Era o ano de 1926 e tudo na vida daquele excepcional rapaz de dezoito anos está para mudar dramaticamente. Tony cai doente. Médicos, exames e surge, por fim, o diagnóstico: hanseníase. A doença, vulgarmente conhecida como lepra, era, então, incurável. Nada podia ser feito pelo garoto. Uma cruel realidade lhe bate ao rosto: viver um doloroso processo degenerativo. O mundo dos sonhos, uma carreira promissora, toda uma juventude fadada ao fim. Antônio Tavernard escreve: “Acharam muito que eu sorrisse tanto/ e fizeram com que na minha boca/ morresse o riso e despontasse o pranto”. Ele não pôde sequer concluir o primeiro ano da Faculdade. Decidiu que era preciso se recolher, afastar-se do inevitável preconceito que o vitimaria. Precisava isolar-se para encontrar uma forma qualquer de renascer.


Atendendo a um pedido do filho, Othilio manda construir nos fundos da casa um pequeno chalé. Lugar que o enfermo poeta chamaria de “Rancho Fundo”. Antevendo-se alguma emergência, um sistema especial de sineta é criado, unindo o prédio principal à pequena casa. Para o local são transportados todos os pertences do rapaz. Sobretudo, suas preciosidades: livros, jornais, revistas, resmas de papel e canetas. Passado o choque inicial imposto pela nova realidade, Tony não sucumbe a angústia. Floresce em sua alma um dos mais impressionantes testemunhos de coragem já vistos. Sua fé, no lugar de esmorecer, torna-se imbatível. Era preciso que as lágrimas se transformassem em fonte de algo mais, que virassem o minar da mais vibrante e arrebatadora arte. Incentivado pela fiel e devotada amiga, sua mãe, ele dá início a uma produção literária assustadoramente bela.

A sombra da doença traz para a alma de Tony um tom místico, um estilo visceral. Aos 19 anos, ele já conta com uma vasta gama de trabalhos, torna-se um artista conhecido e respeitado pela classe. Com esta mesma idade, obteve o segundo lugar no concurso nacional de contos da revista “Primeira”, passando a colaborador da publicação. Seria ainda redator-chefe da revista “A Semana” e colaborador em quase toda a imprensa do país.

Os amigos de verdade não se afastam de Tony. E amigos novos surgem, interessados em se aproximar daquela alma que conseguia fazer de sua tragédia pessoal gênese para tanta beleza. O Rancho Fundo em nada se tornou um centro de solidão. Rodas de violeiros, boêmios e poetas formavam-se ao redor do leito de Tony. E ele poetiza: “Meu São João/ na noite do vosso dia/ com fogueiras brilhando de alegria/ com alegrias cantando num rojão/ parai um pouco na melancolia/ do meu portão”.

Personalidades vinham de longe conhecer tão cativante criatura. Fernando Castro, um dos amigos de Tony, dada ocasião, pediu-lhe para que recebesse o intelectual Paschoal Carlos Magno, que visitava Belém e insistia em conhecer o poeta. Uma vez apresentados por Fernando, Magno teria falado: “Muito prazer em conhecer o novo Machado de Assis”, ao que Tony responderia: “Com uma grande diferença: menos talento e mais sofrimento”.

Em 1929, o poeta finaliza seu primeiro livro. Uma coletânea de contos que atendia pelo sugestivo título de “Fêmea”. A obra reunia textos com temáticas ousadas para a época. A capa ganhou a provocativa ilustração de uma mulher nua, de costas e pendurada nas palavras Antônio Tavernard. Desenho assinado pelo pintor peruano Roberto Reynoso. O livro é editado no ano seguinte, causando reações díspares no meio literário: de um lado, desaprovação; do outro, aplausos.


Ainda em 1930, em parceria com o amigo Fernando Castro, Tavernard lançaria a comédia “A menina dos 20.000”. Era a prova de que o poeta sabia, como poucos, alimentar sua veia humorística, mesmo em meio a seu drama. Tony escreve ainda para o teatro as deliciosas peças “Seringadela”, “Que tarde” e “Paratí”. Escreveu o hino oficial do Clube do Remo que hoje é cantado em verso e prosa por milhares de admiradores do clube ( texto nosso).



Um marcante enlace entre duas dádivas da arte paraense acontece no ano de 1932. Outra vez cumprindo o papel de ponte, Fernando Castro une Antônio Tavernard ao jovem compositor Waldemar Henrique. Os dois, no entanto, jamais se veriam pessoalmente, pois o poeta já vivia em total reclusão no Rancho Fundo. Apesar da distância, o entrosamento entre os três artistas foi absoluto. Decidiram montar um espetáculo teatral a ser encenado na quadra nazarena. O objetivo era reverter a renda em prol do próprio Tony, já bastante debilitado pela enfermidade. Fernando tomou para si o encargo de fazer os textos da revista teatral que se chamaria “A casa da viúva Costa”. A Tavernard caberia a parte poética e a Waldemar, as partituras dos números musicais. Em outubro de 32 a peça é encenada num dos vários teatrinhos do arraial de Nazaré, recebendo críticas altamente elogiosas por parte da imprensa: “Todos três têm talento até para ceder por empréstimo”, estamparia um periódico. Bilhetes e telefonemas tornaram-se os aliados de Waldemar e Tony na troca de idéias e inspiração. Desse modo, os dois idealizaram uma série de canções inspiradas nas lendas amazônicas. Apenas duas, entretanto, chegariam a ser concluídas: “Foi Boto, Sinhá” e “Matinta Pererêra”. O tempo para desenvolver aquele promissor enlace artístico fez-se diminuto. A doença avançava pelo interior de Tony de forma impiedosa e voraz.


Era o dia 02 de maio de 1936. Manhã clara, amena A sineta do Rancho Fundo toca com angústia. D. Marietta corre em busca do filho, o bebê que tomara no colo na Vila dos Pinheiros. A matriarca manda que chamem Othilio no trabalho com urgência. Sabendo o que estava por acontecer, ela conduz o poeta para fora de seu refúgio e, outra vez tomando-o nos braços, acomoda-se numa cadeira de balanço. A própria imagem da Pietá. Nos braços da mãe, Tony fecha os olhos por definitivo. Aos vinte oito anos, o anjo alado por versos é levado de volta à eternidade pelo Mistério, pela Força e pela Beleza. Dias depois do enterro, uma vizinha revelaria a família ter sonhado com o poeta, todo vestido com uma túnica branca, procurando sentar-se e dizendo, arfante: “Graças a Deus, cheguei!”.



Fonte:  
SANTOS, Carlos Correia. Antônio Tavernard: patrimônio das letras amazônicas. Disponível em: http://www.souparaense.com/2011/03/antonio-tavernard-patrimonio-das-letras.html. Acesso em 02 maio 2015.